terça-feira, 9 de novembro de 2010

ORDEM E PODER 3 - Os poderes atemporais do Direito Natural

  1. À antiga polêmica entre jusnaturalismo e juspositivismo deve se acrescentar a relação entre direito e moral que se encontra no seu centro, pois em verdade essas dois posições jus-filosóficas sempre enfrentaram discursos justificadores diferentes sobre essa relação. Enquanto o primeiro enfatiza esse vínculo o segundo tende a nega-lo. (NINO). De modo que um jusnaturalista procura sempre identificar um certo referencial externo e anterior ao direito que dele não depende e um juspositivista fundamenta a validade do direito a partir de abstrações lógico- axiomáticas (KELSEN), da vontade decisionista (SCHIMTT),  das relações de classes e de poder (MARX), das situações sociais fáticas, da evolução e o espírito do povo (SAVIGNY),  ou ainda da vontade do aplicador (CARDOSO, POUNS, FRANK).
2.    A ideia é demonstrar duas coisas: i) que esse debate certamente não acabou e que possui importância além do campus universitário e ii) que tais posições têm conseqüências práticas, normativas e sociais significativas (NINO), incidentes na compreensão, explicação (no melhor sentido da dogmática.) e na realização do direito. Utilizo-me para tanto, da atividade de aplicação do direito levada a cabo sistematicamente pelo Judiciário como campo de minhas reflexões e das possibilidades epistemológicas de uma teoria jurídica liberta dos dogmatismos formalistas – legalistas que invadiram o pensamento jurídico depois das agudas obras de Maquiavel (O Príncipe), Bodin (Seis Leis da república) e Hobbes (Levitam) nos séculos XV, XVI e XVII, o constitucionalismo, a codificação e as diferentes escolas que de alguma maneira foram influenciada pelo sistema de Positivismo filosófico de Augusto Comte.
3.    Afirmar simplesmente que vivemos a época da  nova teoria jurídica identificada como Pós- positivismo ou “Terceira via”, para fazer referência ao abandono do positivismo legalista – formalista e sua epistemologia (CANARIS), ou à retomada dos postulados jusnaturalistas, embora com outras denominações,  e mesmo ao consenso entre ambas posições, parece- me insuficiente para entender o momento teórico que presenciamos. Não se trata de uma solução eclética pós moderna. Em verdade realidades e fatos históricos  (pense-se na escravatura, o holocausto, as ditaduras, o apartheid, os regimes autocráticos, as violações institucionalizadas aos direitos humanos, as arbitrariedades governamentais) foram evidências suficientes para que a idéia reprimida historicamente de que o Direito precisa de um referencial moral externo para ser justificado e ser uma representação normativa do Bem fora admitida.
4.    As chamadas a  essa exigência de moralidade que hoje consagra a teoria jurídica não são novas. AGOSTINHO afirmara: “se dos governos [e a ordem que eles impõem e defendem] tirarmos a justiça, em que se convertem se não num bando de ladrões em grande escala”(CIDADE DE DEUS). TOMAS DE AQUINO sentenciou “a lei é uma ordem da razão imposta para  bem comum e promulgada por aquele que tem a seu cargo uma comunidade” (SUMMA TEOLÓGICA, I, II,90 4). Também AGOSTINHO que uma lei para ser entendida como tal deveria ser justa, enquanto KANT escreveu: se a justiça desaparecesse, não valeria mais a pena que os homens vivessem sobre a terra.  DEL VECCHIO alertou: “... ninguém pode contestar a legitimidade e a necessidade da meditação sobre o ideal do direito (...) Não podemos limitar-nos ao estudo exclusivo do direito positivo, pois, se o fizéssemos, renegaríamos e exautoraríamos a nossa consciência, opondo-nos a que se investigue o justo em si”     
5.    Creio que a teoria jurídica atual mais que conciliar essas duas posições encaminha-se à defesa (que seja de maneira encoberta),  da tese que existe um único Direito que é o Direito Positivo, mas que ele somente é justificado, legal (RADBRUCH: ), legitimo ou mesmo justo se corresponde com  um referencial teleológico- axiológico  que lhe pré-existe, universalizado e que faz que todos os povos hoje tenham-no como o ideal de sociedade a construir. Referencial que ontologicamente apresenta-se como um sistema de valores sociais e jurídicos e  princípios morais.  
6.    Parte-se da nova compreensão teórica do jurídico suprimindo para com uma transformação metodológica não partir apenas do que existe senão da sua razão de ser, de seu fundamento e justificativa. “Isso significa não apenas não sacrificar a realidade objetiva do direito nem a idealidade normativa que ele veicula, pensa-la juntas”(GOYARD-FABRE: XLII). Uma conjugação dialética de um dever ser ideal independente e diferente do dever ser real que as normas representam (PERELMAN)
7.    Não se desconhecem aqui as críticas metodológicas feitas aos diferentes tipos de jusnaturalismos. Tampouco se ignora que as ideias do Direito natural serviram para justificar situações políticas e regimes que foram a antítese do que o jusnaturalismo preconiza ao referir-se à justiça e ao direito justo. (KELSEN)
8.    Justamente ao ter-se em conta as críticas, apresenta-se como conclusão – ao menos a principal -  que a tese de um renovado jusnaturalismo    esta ligada à busca da humanidade e da própria teoria jurídica de critérios objetivos para discutir a qualidade do jurídico – moral no direito positivo e que sua existência não resulta incompatível com a segurança jurídica, a cientificidade  da teoria jurídica, menos com o pluralismo democrático da pós- modernidade.
9.    Formulemos as seguintes perguntas:
a)         Existe o Direito Natural?
b)        Qual a fisionomia do Direito Natural?
c)         Onde se fundamenta o Direito Natural (sendo que não o faz na norma hipotética kelseana nem na regra de reconhecimento de hartiana)
d)        Que falta faz a um sistema jurídico posto, eficaz  o Direito Natural?
e)         Como não seria contestado a idéia de Direito Natural em meio da segurança jurídica de um Estado Democrático – social – e de Direito?
                



  1. Os princípios e valores morais que sustentam a idéia do direito, do que ele deveria ser para se justificar e corresponder com o ideal que concordamos garantiria nossa vida feliz e com liberdade na terra. O natural relaciona-se com a natureza humana, com a capacidade do homem de se auto-dirigir, com o poder da razão. O conceito direito relaciona-se com princípios e valores que se tornam  normativos, orientando um dever ser, conformando um sistema ético. Um referencial teleológico, um sentido que se atribui aquilo que se nos apresenta como o necessário à existência e a convivência em comum.
11.   O universal e imutável é sua função, isto é, o estabelecimento de uma exigência de não aceitar como verdade normativa última a perspectiva do legislador, das classes políticas e dos detentores do poder. Seu conteúdo ( princípios e valores) podem e estão sujeitos à interpretação humana a partir de demandas histórico- culturais e por isso se objetivam para se revitalizar.
12.   Onde se fundamenta o Direito Natural ? Numa racionalidade universalizada, (não universal), num consenso do que queremos ser como comunidade de homens e o queremos ter como  sociedade humana.(DWORKIN)
13.   PERELMAN refletiu: “A equidade é a volta ao direito natural, no silêncio, na oposição ou na obscuridade das leis positivas”. Mais adiante: “O crescente papel atribuído ao juiz na elaboração de um direito concreto e eficaz torna cada vez mais ultrapassada a oposição entre direito positivo e direito natural...” Enfim: “Se o recurso ao direito natural foi relativamente raro na jurisprudência européia antes da última guerra, a reação provocada pelos excessos do nacional- socialismo generalizou o recurso “aos princípios gerais do direito, comuns a todos os povos civilizados”
14.  Em verdade a onda principiológica que tomo conta da aplicação e até da própria dogmática jurídica não é outra coisa que uma volta ao jusnaturalismo  disfarçada. É a revitalização do Direito Natural sob a idéia de Princípios gerais do direito. Pois bem, que são os PGD se não “axiomas do direito público”,(PERELMAN) “valores universais presentes em todas as sociedades”, assertivas morais que universalizadas (não universais) garantem que o direito encontre seu sentido. Uma espécie de provérbios culturais que os povos tem admitido e que os legisladores usam para realizar ideais de convivências e os juízes e dogmáticos para preencher as lagunas, suprimir antinomias do legislador.
15.   A questão parece-me ser hoje outra: qual a função do Direito Natural? Sem o Direito Natural o legislador e o aplicador do direito não encontrariam outro referencial que suas próprias subjetividades, suas vontades institucionalizáveis e a legitimação de seus delírios decisionistas. Comprovar-se-á que procedimentos formais postos apresentam-se insuficientes, porque, em definitivo, tais regras  resultam desses legisladores e aplicadores.
16.  A falta que faz o Direito Natural é justamente porque configura-se como guardiã da racionalidade, da justiça e da moralidade, destacando-se como o grande crítico, impossível de dominar e corromper ao estar fora do alcance do poder, das instituições e das manipulações humanas.  Representa o bom censo, o razoável o evidente, que não precisa demonstração porque qualquer membro do “auditório universal” o reconheceria como o correto.
17.  Parece que  BOBBIO ajudaria a compreender essa função: “ Que fique bem claro que as críticas não pretendem despojar o Direito Natural de sua função histórica nem tampouco suprimir a exigência que esse Direito expressa, a exigência de não aceitar como valores últimos os que vêm impostos pela força da classe política no poder. Desejaria fazer constar bem claramente que as dúvidas aqui formuladas não afetam em modo algum à existência de valores superiores às leis positivas nem, ao conteúdo das mesmas, senão unicamente a sua motivação” (Apud PECES-BARBA  outros : 306)   

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